domingo, 12 de julho de 2015

Melhor que proibir o Uber é fortalecer os taxistas, diz chefe do Cade


Sergio Lima/Folhapress
O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Vinicus Marques de Carvalho
O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Vinicus Marques de Carvalho
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A proibição do uso de aplicativos de carona como o Uber pode prejudicar os consumidores, diz Vinicius Marques de Carvalho, presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão de defesa da concorrência.
Segundo ele, é preciso debater a regulamentação do serviço e a criação de mecanismos que deem aos taxistas condições de concorrer com os novos rivais.
"O único debate que hoje não vai fazer bem à sociedade, pelo menos do ponto de vista da lógica concorrencial, é o voltado para uma discussão binária do pode ou não pode", disse à Folha.
Segundo ele, inibir aplicativos de compartilhamento é um erro.
Carvalho afirma que o Airbnb, por exemplo, está sendo usado como um dos principais mecanismos de hospedagem para a Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro.
"Não conheço sociedade que se desenvolveu sem permitir que a inovação floresça e não podemos colocar isso em risco em nome de interesses corporativos, que em várias situações colidem com a defesa da concorrência", disse.
O Cade investiga se associações de taxistas vêm infringindo a lei da concorrência na tentativa de inibir o uso do Uber no país. Nas últimas semanas, a câmara legislativa do Distrito Federal e a câmara municipal de São Paulo aprovaram projetos inibindo o uso do serviço.
O Uber funciona hoje em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
*
Folha - Estudantes do Distrito Federal entraram com representação no Cade, acusando taxistas de abusar de medidas judiciais e fazer pressão política contra o aplicativo Uber, prejudicando, assim, a concorrência. Há base para ação do Cade?
Vinicius Marques de Carvalho - Essa é a avaliação que a superintendência-geral está fazendo nesse momento.
A representação menciona não só o abuso de direito de ação, que em inglês é o sham litigation, como a incitação à violência física e verbal contra concorrência e consumidores, ameaças públicas, pressão junto a agentes públicos e ações de natureza anticompetitiva.
Essas possíveis condutas de fato podem, após uma análise profunda que será feita pela superintendência-geral, se configurarem num ilícito anticoncorrencial.
Mas essa avaliação ainda está sendo feita. É importante separar duas coisas. Uma é a análise de possíveis condutas de agentes econômicos, no caso os taxistas ou as associações, de taxistas, para impedir a atuação de um possível concorrente no mercado.
Em relação a isso, a forma que o Cade pode atuar é abrir uma investigação para avaliar se de fato são condutas anticompetitivas.
Outra dimensão que o Cade pode atuar diz respeito a possíveis legislações e regulamentações que inibam ou proíbam a atuação de aplicativos.
Se houver medidas judiciais contra essas legislações, o Cade pode atuar como "amicus curiae" [interessado no causa], auxiliando o Judiciário, para que ele tome uma decisão sobre a possível inconstitucionalidade de medidas proibitivas de empresas nesses mercados.
O Cade não pode forçar, portanto, um recuo no Legislativo.
Não. O que o Cade pode fazer é emitir opinião ou fazer um estudo sobre impactos anticompetitivos e inibidores da livre concorrência decorrente dessas legislações e ofertar ao Judiciário.
Quais serão os próximos passos do Cade?
Hoje há uma representação com pedido de medida preventiva. A superintendência está avaliando se há elementos para estabelecê-la.
Por exemplo, se o tempo da investigação do Cade pode gerar uma ameaça muito clara à livre concorrência e, por isso, uma ação imediata é necessária. O que eles [os universitários] pedem é a adoção da medida preventiva para que se determine a cessação de quaisquer atos abusivos, como uso despropositado de medidas judiciais, uso de violência e pressão junto ao legislativo.
Pode-se ainda abrir um processo administrativo para investigar a conduta e, é nesta fase, que se está hoje.
Estamos diante de um cenário em que várias condições tecnológicas se alteraram nos últimos anos, muita inovação ocorreu nesses mercados. As pessoas estão falando muito do Uber, mas não é só ele. É tudo que se enquadra na chamada economia de compartilhamento.
Uber, Airbnb [plataforma para hospedagem] e outros.
Quando estamos diante de uma inovação como essa, normalmente interesses corporativos se apresentam para preservar o status quo. E a grande discussão que se coloca é quais interesses irão prevalecer.
O Cade tem um foco muito imediato no interesse na defesa da concorrência e do consumidor, que é um ator que, me parece, está sendo desprezado nessas discussões.
A sociedade quer esse serviço ou não? Nos lugares em que esses aplicativos [de carona] apareceram e hoje são permitidos, o que se fez foi adaptar a regulação para se lidar com o serviço de maneira adequada, permitindo a oferta à população e até certa pressão para a melhora do serviço de táxi no caso.
O sucesso do Uber até agora sinaliza que o serviço é necessário?
O sucesso é aferido pelo fato de você ter ou não crescimento de determinado serviço. É uma decisão do próprio consumidor, considerado de maneira agregada.
Se a sociedade e o Estado brasileiro não tiverem o foco no interesse do consumidor, talvez estivéssemos fazendo até hoje as ligações por meio de telefonista.
Há inovações que de fato ameaçam determinados modelos de serviços e profissões são alteradas.
O serviço de táxi é caracterizado por assimetrias de formação. Quando chama o táxi, você não sabe o estado do veículo, o preço final que irá pagar pela corrida e a confiabilidade do condutor.
Além disso, há problemas de coordenação. Muitas vezes, há muito táxi em áreas de pouca demanda e pouco táxi em áreas de muita demanda.
Esses aplicativos geram desafios para esse modelo regulatório antigo.
E por que o modelo antigo não se adapta? Existem aplicativos de táxi também, que cumprem um papel interessante de evitar algumas dessas falhas, mas esses novos aplicativos suprem outras falhas.
Há o Uber, mas há outros que, se já não estão por ai, devem chegar.
O Waze [aplicativo de trânsito e navegação] está testando um sistema de carona remunerada. Enquanto sociedade, diremos que isso não pode, que é ilegal?
Qual o impacto que isso tem em termos de mobilidade urbana também? Esse é um debate que a sociedade tem de fazer.
Não conheço sociedade que se desenvolveu sem permitir que a inovação floresça e não podemos colocar isso em risco em nome de interesses corporativos que em várias situações colidem com a defesa da concorrência.
A lei 12.468, sancionada pela presidente Dilma em 2011, define que é atividade privativa dos profissionais taxistas o transporte público individual. A lei exige cursos e o uso de taxímetro para cidades acima de 50 mil habitantes. Considerando a lei em vigor, o serviço do Uber não é ilegal?
Não sei se quando escreveram a lei estavam diante dessas possibilidades de inovação.
Qualquer regulação que exista tem de ser responsiva às inovações, não pode se configurar em mecanismos que inibam soluções inovadores para diversos mercados. Esse é um ponto em que ninguém diverge.
Outro ponto é que ninguém está dizendo que esses aplicativos não tem de ter regulação.
Nos Estados Unidos, houve uma necessidade de se fazer adaptação na legislação em várias cidades para viabilizar a convivência entre esses serviços e os de táxi tradicional. Se não se encaixa na interpretação formal da legislação, o correto é dizer que é ilegal ou é pensar maneiras de adaptar e regulamentar, permitindo que esses serviços consigam atuar em nome de um interesse maior que o é interesse da sociedade e da maior concorrência?
Essa é a avaliação que deveria estar sendo feita. É dessa perspectiva que tem de ser debatido e não de um interesse corporativo específico que está sendo atingido e representado como um interesse que está acima da sociedade como um todo. No mínimo, é preciso debater o tema sem preconceito.
O porta-voz do Uber afirmou à TV Folha que a legislação anda mais devagar do que a inovação e, colocar o Uber no modelo antigo, seria comparar Netflix e TV. O sr. concorda?
Eu concordo com a ideia de que você pode ter situações que gerem impacto nas regulações e a lei tem de ser adaptar à realidade, tem de ser responsiva ao interesse da sociedade. Inovação gera desenvolvimento econômico e pode gerar qualidade. E o serviço de táxi pode ser um serviço receptivo à inovação.
Faz sentido hoje, por exemplo, você ter um limite de licenças [para táxi]? Esses serviços novos só aparecem porque existe uma demanda.
Pegando o exemplo Brasília: tem 30 anos que não há novas licenças de táxi. Quantos habitantes havia em Brasília e quantos há hoje? Será que a demanda não aumentou?
No ano 2000, o Cade emitiu uma decisão num caso dizendo que o desconto na tarifa de táxi tinha de ser permitido. Faz sentido que o táxi seja tarifado do jeito que é? Que interesses estão sendo preservados?
Qualidade é muito mais importante em algumas situações do que a regulação de preço. Ninguém está falando que não tem de haver regulação. Restaurantes, por exemplo, você pode abrir em qualquer lugar do país. Não existe nenhuma lei municipal dizendo quando restaurantes têm de haver numa cidade. É uma atividade que você quer regular. Precisa de uma série de autorizações, inclusive, relacionados à saúde pública.
Para preservar a qualidade, faz sentido impor limite de restaurantes? Não.
Por que então, para preservar a qualidade e segurança de serviço de táxi, tem de impor um limite? Se a pessoa e o veículo preencherem os requisitos, que os municípios vão dizer quais são, por que ela não pode fornecer o serviço? Quando aparece um novo aplicativo como esse, toda essa discussão acaba sendo colocada de volta.
O que o sr. diz é que o sistema atual precisaria de qualquer maneira de uma revisão.
A discussão necessária é em que medida e como esses aplicativos poderão atuar e também como o próprio serviço de táxi pode se ajustar para competir. Essa discussão é muito mais saudável do que o debate de que, na minha opinião tem impactos concorrenciais negativos a princípio, de vamos proibir esses aplicativos e ponto final.
Que interesse está sendo preservado com a simples proibição dessa atividade? É do consumidor, é da sociedade brasileira? Em nome de quem o Estado brasileiro vai proibir a atuação de qualquer atividade inovadora?
O Airbnb é outro fenômeno da economia do compartilhamento e hoje já está sendo adotado como um dos principais mecanismos de hospedagem para as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. É o caso de proibir e dizer que só quem pode hospedar cobrando por isso é hotel e pousada? Ou será a de entender que o Airbnb é uma realidade e temos de pensar um jeito de dar as condições necessárias para que esse mercado se desenvolva?
É essa decisão que se precisa ter.
O debate envolve a questão do pagamento de tributos.
Sim. Pode ter uma debate sobre tributos, sobre regulação de qualidade. Esses debates não tem de ser interditados de forma alguma.
O único debate que hoje não vai fazer bem à sociedade, pelo menos do ponto de vista da lógica concorrencial, é o voltado para uma discussão binária do pode ou não pode.
Os taxistas argumentam que o Uber é uma concorrência desleal. Já os defensores do aplicativo lembram dos incentivos fiscais concedidos aos taxistas para a compra de carro, por exemplo. O que o sr. considera ser mais distorcido na relação que já existe?
Não fiz essa conta. E da perspectiva da autoridade de defesa da concorrência, ela não é necessária. O que se avalia aqui é a possibilidade um novo serviço para a população. Se você tem custos maiores de um lado ou de outro, talvez seja o caso da regulação criar mecanismos de equalização. Mas, usando o caso de Brasília novamente, não há novas licenças há trinta anos. Então, essas licenças já foram amortizadas.
Há um comércio de licenças? Pode ser que tenha, mas tem de ser abordado se é legal ou ilegal. Hoje, as licenças têm um valor decorrente do fato de que não há novas autorizações. Por isso, elas valem muito.
Se há uma alternativa ao motorista entre comprar uma licença e ir para o Uber, a tendência é que o preço dessa licença caia.
O problema de fundo é o fato de que essas licenças vão perder valor. Muitas vezes os donos não são os motoristas.
Há alguns anos, as pessoas ficavam na fila para adquirir linha de telefone, porque era um investimento e, de repente, com o aumento da concorrência no serviço de telecomunicações, o valor da linha chegou a zero praticamente. Isso foi ruim para a sociedade brasileira? É dessa perspectiva que a gente tem que discutir e não da perspectiva do detentor da licença. Talvez possa ser necessário certa compensação em determinados casos.
Será preciso avaliar.
O Uber diz que é somente uma empresa de tecnologia que liga motoristas a passageiros. Mas o próprio site faz propaganda da facilidade de ter a tarifa estimada antes da corrida e dividir a conta com amigos por meio de cartão de crédito. A argumentação do Uber se sustenta?
Da perspectiva da defesa da concorrência, o fato de ele ser um intermediador ou não importa pouco. Trato o Uber como agente econômico que gerencia via uma plataforma de tecnologia um mercado de dois lados. Como o Airbnb.
Todos esses aplicativos obviamente têm objetivos empresariais, econômicos. Tratando-o como um mero intermediador ou como alguém que presta um serviço diretamente de transporte individual privado, não importa. Tem de se discutir a regulamentação e garantir que o interesse do consumidor final seja resguardado.
Na França, o governo vem agindo para proibir. O desenrolar do debate na Europa pode servir de guia para a forma como o serviço será tratado aqui?
Na última reunião do comitê de defesa da concorrência da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), houve uma discussão em que várias autoridades de defesa da concorrência se colocaram a favor do estímulo a essas inovações, chamadas de disruptivas e que têm envolvido o surgimento desses aplicativos. Inclusive em países como Espanha, Alemanha e França, em que há uma discussão sobre legislações restritivas ou não.
Nosso papel como agente de defesa da concorrência é colocar essa perspectiva em discussão. Sabemos que há tantas outras tão legítimas quanto. Mas é preciso colocar isso na mesa. É o que tem sido feito pelas autoridades nos diferentes países. Como isso tem sido absorvido pela legislação, é de cada país. Mas em geral, as autoridades estão coordenadas e compartilham da mesma preocupação, que é favorecer de fato a concorrência.

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